Em pleno mês de abril, tradicionalmente marcado pela Jornada de Lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o campo brasileiro voltou a ser palco de violência e tensão. Cerca de 300 famílias foram expulsas de forma violenta de uma área ocupada em Dourados, Mato Grosso do Sul, em ação realizada pela Polícia Militar, sem mandado judicial. A denúncia, feita pelo próprio MST, reacende o debate histórico sobre a estrutura fundiária brasileira, a função social da propriedade e os limites da ação estatal na mediação dos conflitos agrários.
O episódio teve início no sábado (26), quando trabalhadores ocuparam uma fazenda da empresa JBS, considerada improdutiva há mais de 12 anos, reivindicando sua destinação para a reforma agrária. Segundo o MST, drones sobrevoaram o local logo após a chegada das famílias, e a repressão policial veio na mesma noite: tropas de choque, do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), e efetivos da PM realizaram três investidas, prometendo uma ordem judicial que nunca veio. Na madrugada, sem decisão da Justiça, a polícia isolou a rodovia de acesso, usou balas de borracha e gás lacrimogêneo e destruiu os barracos e plantações já cultivadas no local.
A operação ilegal — dado que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XI, protege a inviolabilidade do lar, salvo em flagrante delito ou com ordem judicial — expõe a fragilidade dos direitos das populações camponesas no Brasil contemporâneo. “A luta pela terra é uma luta pela dignidade e pelos direitos humanos básicos”, já afirmava o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Sem a necessária mediação institucional, prevalece a força bruta, numa triste continuidade da tradição histórica de violência no campo brasileiro.
Não se trata de um evento isolado. A ocupação em Dourados é uma ampliação do Acampamento Esperança, existente há dois anos às margens da rodovia MS-379. O MST denuncia que, apenas em 2024, essa mesma comunidade foi alvo de três incêndios e de um ataque de pistoleiros — prática que, infelizmente, remonta ao chamado “coronelismo” da Primeira República, descrito por Victor Nunes Leal em sua obra clássica Coronelismo, enxada e voto (1949).
A situação vivida em Dourados repete-se em outras regiões. No mesmo sábado, em Arapiraca (AL), 300 camponeses ocuparam outra fazenda improdutiva, próxima à Vila Bananeira. Lá, também enfrentaram ameaças de grupos armados ligados à pistolagem e ao movimento “Invasão Zero”, que, em conluio com interesses locais, enviou 20 caminhonetes com homens armados para intimidar os trabalhadores. A PM bloqueou temporariamente o acesso ao acampamento e a entrada de alimentos, prática que viola o direito humano básico à alimentação garantido em tratados internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário desde 1992.
“Queremos mudar a cara desse local: o que antes era improdutivo, nós queremos diversidade de produção, preservação dos bens da natureza e famílias vivendo com dignidade”, declarou Margarida Silva, da coordenação nacional do MST. Sua fala remete à concepção de função social da propriedade prevista no artigo 186 da Constituição, que determina que a terra deve atender à sua função social, respeitando princípios de produtividade, preservação ambiental e justiça social.
Abril Vermelho: tradição de luta e resistência
A ação em Dourados integra o chamado “Abril Vermelho”, período de mobilizações intensas em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás (PA), ocorrido em 17 de abril de 1996, quando 21 trabalhadores rurais foram mortos pela Polícia Militar do Pará durante uma marcha pela reforma agrária. O episódio, amplamente documentado por organismos internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional, é um marco que evidencia a violência histórica associada à disputa fundiária no Brasil.
Em 2024, o MST contabiliza 30 ocupações em todo o país no âmbito dessa jornada de lutas. A movimentação reforça o apelo por políticas públicas de redistribuição de terras e assentamento rural, num país onde, segundo o último Censo Agropecuário do IBGE (2017), apenas 1% dos proprietários detêm quase 50% das terras agrícolas.
A disputa pelo futuro: terra para quem trabalha
O conflito em Dourados não é apenas uma disputa física pela posse da terra, mas uma luta simbólica pelo modelo de país que se quer construir. Como observou o geógrafo Milton Santos, “o território é usado como instrumento de poder”, sendo a quem pertence e como se usa esse território uma questão central para o futuro das sociedades.
Diante disso, a ausência de diálogo institucional e o uso excessivo da força estatal refletem não apenas uma violação de direitos, mas a negação de projetos de vida e de dignidade para centenas de famílias brasileiras. A mediação do Incra no local pode representar uma abertura para a negociação pacífica, mas ainda resta o desafio de garantir que a terra cumpra seu papel social, promovendo cidadania e democracia.
Como lembra o jurista e filósofo Norberto Bobbio, “a luta pelos direitos humanos é a luta mais longa da humanidade, e está longe de acabar” (A Era dos Direitos, 1992). Em Dourados, em Arapiraca, em tantos outros cantos esquecidos do país, essa luta segue viva — e essencial.