Maria Adelina, 77. Valmira dos Santos, 83. Maria de Lourdes, 88. Maria dos Santos Soares, 101. Juntas, essas mulheres somam mais de trezentos anos de vida.
Mais de três séculos de legado e resistência. Todas elas estavam em Brasília neste 25 de novembro, marchando por reparação e bem viver. Vindas do Norte, do Nordeste, do Sudeste, do Sul e do Centro-Oeste. Um Brasil inteiro convergindo na capital para a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras.
Notícias relacionadas:Marcha em Brasília une mulheres de todo país na luta contra o racismo.Sessão solene na Câmara homenageia Marcha das Mulheres Negras.Reparação e bem-viver: por que marcham as mulheres negras?.“Era hora da gente voltar. Nesses últimos 10 anos, a sociedade se moveu. No primeiro período, reconhecendo a presença das mulheres negras, que assumiram postos de destaque nesse período; mas o outro lado se reagrupou, os supremacistas brancos, os racistas, os conservadores saíram para a rua também para confrontar tudo que a gente propôs para enfrentar o grau de violência contra nós e piorar a situação social e política no Brasil e no mundo”, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.
Jurema afirma que a luta por reparação é justa uma vez que as mulheres negras construíram o Brasil.
“Tudo que você olha em volta tem a mão de mulheres negras”, coloca.
Mãos como a de dona Maria dos Santos Soares, a dona Santinha. Mineira morando no Rio de Janeiro, filha caçula de uma família de 14 irmãos, dona Maria está há muitos anos na luta, com os punhos levantados, marchando contra as desigualdades. Sem medo.
Brasília (DF), 24/11/2025 – Aos 101 anos, Dona Santinha, ativista histórica, marchou com milhares de mulheres. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
“Eu sou muito audaciosa e eu tenho um espírito político desde pequena. Eu não tinha essa consciência que tenho hoje, esse conhecimento. Mas sempre fui destemida. E, agora, mais do que nunca. Eu não sei ser indiferente aos fatos”.
Presente na primeira marcha, em 2015, dona Maria fez questão de marchar novamente, aos 101 anos, acompanhada da única filha e da única neta. E de milhares de mulheres que param para abraçá-la, tirar uma foto, agradecer e reverenciar.
“Eu vejo que a nossa força está expandindo por todo lado. Temos conseguido muito pouco, mas esse movimento me dá esperança de que a gente vai conseguir mudar essa realidade cruel que atinge o povo negro”, acredita.
Uma realidade que ela percebe vir mudando, mesmo que aos poucos. Ela conta que passou anos sem ver televisão, porque não via negros nas produções.
Da mesma forma, sempre questionou a falta de produtos próprios para a sua pele, assim como a inexistência de bonecas negras, durante muitos anos nas lojas. Mas acredita que os avanços existem. Principalmente quando olha para sua própria história.
“Já fui da época em que você chegava no bar e diziam que não aceitava preto. Isso em 1950, não tem tanto tempo assim. Hoje é crime. A pessoa pode ter vontade de nos hostilizar, mas se calam. Já é um grande avanço”, afirma.
Gestoras de impossível
Avanços que podem ser vistos nas histórias individuais, mas também no movimento de mulheres negras como um todo.
Valdecir Nascimento, do Comitê Nacional da Marcha, disse que estava com a emoção quadruplicada nessa segunda marcha, sobretudo ao ver o tamanho do evento, estimado em quase 500 mil mulheres.
Rio de Janeiro – Valdecir Nascimento, do Comitê Nacional da Marcha. Foto: Arquivo/Tânia Rêgo/Agência Brasil
“Significa que o que a gente plantou em 2015 cresceu e tá dando fruto. Significa ver as jovens querendo tocar, puxando, sem que a gente tenha um conflito sobre isso. Então, 10 anos depois, a gente está mais madura. Nós estamos mais estratégicas. Quem tinha 15, 16, 20, agora tem 25, 30, 45. Então, é isso. A ideia de continuidade, a ideia de coletividade, nós precisamos reafirmar que somos coletivas, sozinhas a gente não vence. E é isso que essa marcha reafirma. É por nós, não é por uma ou outra, é por nós”, comemora.
Valdecir classifica as mulheres negras como gestoras do impossível. Ela afirma que, nesse país, racista e hostil, as mulheres negras permanecerão em luta.
“Se a chave vira para o campo da esquerda, não significa que ganhamos. Se ela gira pro campo da direita, agudiza mais as nossas perdas. Então, estamos sempre na luta. Somos o terceiro olho, saca? E, como terceiro olho, a gente precisa permanecer visualizando um futuro que só as gestoras do impossível têm a capacidade de visualizar”, finaliza.
Ocupar as ruas, enquanto necessário for
Na marcha, com sua arte, performances, instrumentos musicais, corpo, cabelos e vozes, as mulheres negras seguem sonhando com o impossível. Carregando suas lutas, as dores pela perda de seus filhos, as mãos sujas de terra.
Vindas do interior ou dos grandes centros. Aos dez anos de idade. Ou aos 101, como dona Santinha.
Rio de Janeiro (RJ), 05/03/2024 – A diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck. Foto:Arquivo/Tomaz Silva/Agência Brasil
Para Jurema Werneck, a presença dela e de tantas outras mais velhas é um lembrete de que a luta não para e que é um compromisso de todas. Um caminho para que outras formas de viver, menos violentas, com mais dignidade, sejam traçadas.
“Enquanto for possível, todas nós ocuparemos as ruas; enquanto for necessário, todas nós ocuparemos as lutas todas em todas as direções, porque o Brasil precisa ser um lugar diferente, o mundo precisa ser um lugar diferente. A gente sabe o que é o bem viver e a gente quer compartilhar essa proposta para além do capitalismo, para além do neoliberalismo, para além do racismo, existe uma outra forma de habitar o planeta e a gente está novamente reapresentando essa proposta”.
Dona Santinha, que marchou bravamente assume esse compromisso. E não quer abrir mão.
“Eu me sinto uma andorinha, com sua gotinha. Ajuda, né?”, pergunta, sorrindo e já sabendo a resposta.