Sentença inédita condena órgãos públicos por omissão: “Se tivessem agido, ela estaria viva”, diz juiz
Justiça de Mato Grosso do Sul deu uma decisão histórica no caso da pequena Sophia de Jesus Ocampo, morta em 2023 aos dois anos, em Campo Grande. O pai biológico, Jean Carlos Ocampo da Rosa, e o pai afetivo, Igor de Andrade Silva Trindade, venceram na Justiça uma ação contra o Estado e o Município de Campo Grande por omissão e negligência.
A sentença, assinada pelo juiz Marcelo Andrade Campos Silva, da 4ª Vara de Fazenda Pública, reconhece que os órgãos públicos ignoraram as denúncias e deixaram de agir para salvar a vida da menina.
“Se houvesse os agentes públicos agido com a diligência mínima necessária, talvez esta não tivesse sido vítima fatal de seus agressores”, escreveu o magistrado.
Um ano pedindo ajuda e ninguém fez nada
O documento judicial mostra uma linha do tempo marcada pela omissão.Durante todo o ano de 2022, o pai e o companheiro procuraram o Conselho Tutelar, a DEPCA, a Defensoria Pública e até unidades de saúde para denunciar que Sophia era espancada pela mãe e pelo padrasto.
Em janeiro de 2022, Jean notou hematomas no corpo da filha e registrou boletim de ocorrência.
Em novembro, ela foi levada duas vezes à UPA Coronel Antonino, primeiro com hematomas e dores e depois com a perna quebrada.
Mesmo assim, nenhum médico ou servidor registrou os sinais de violência.
O Conselho Tutelar também foi avisado, mas apenas fez uma visita e não tomou medidas de proteção.No fim, em 26 de janeiro de 2023, Sophia foi levada já sem vida a uma unidade de saúde, com sinais de espancamento e violência sexual.
“Jogo de empurra-empurra” matou Sophia
Na decisão, o juiz critica duramente o comportamento das instituições.
Ele aponta que o caso é um exemplo de omissão específica — quando o Estado tinha o dever legal de agir e não agiu.
O magistrado destacou o “jogo de empurra-empurra” entre o Estado e o Município, que ficaram se isentando da responsabilidade enquanto a menina sofria.
Segundo ele, houve falha de todos os níveis da rede de proteção — da assistência social às unidades de saúde e à Defensoria Pública.
“Todas as autoridades públicas responsáveis pela proteção dos direitos da criança ficaram inertes e incumpriram com seus deveres de cuidado”, afirmou.
Reconhecimento do pai afetivo e indenização
O juiz também reconheceu oficialmente o vínculo de paternidade afetiva de Igor Trindade, que conviveu com Sophia desde os 10 meses e era chamado por ela de “Papai Urso”.
Como reparação, o magistrado fixou indenização total de R$ 430 mil, sendo R$ 350 mil para Jean (pai biológico) e R$ 80 mil para Igor (pai afetivo)
Além disso, os dois receberão pensão mensal vitalícia, dividida entre o Estado e o Município. Os pagamentos começam em 2034, quando Sophia completaria 14 anos, e seguem até 2095, conforme expectativa de vida calculada pelo IBGE
Justiça histórica e mensagem dura
A decisão é inédita em Mato Grosso do Sul e reconhece oficialmente que a negligência do poder público contribuiu para a morte de uma criança.
O juiz ainda reforçou que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impõem o dever de proteger com absoluta prioridade os direitos das crianças e adolescentes — dever que, neste caso, foi completamente descumprido.
“Enquanto a menor vivenciava constantes maus-tratos, o pai e o pai afetivo esperavam por um ano a tomada de medidas de proteção, em vão”, concluiu.